Este é o meu refúgio, o meu abrigo. Aqui espelho o meu eu, sob a forma dos meus pensamentos feitos palavras...
Domingo, 21 de Agosto de 2005
Campo de chamas

Dedicado a todos quantos, nestes últimos tempos, se têm esforçado, por entre falta de meios e condições quase inumanas, por travar os inúmeros e violentos incêndios que lavram e devastam este nosso Portugal.


incendios.jpg


Acordou de manhã bem cedo, ao som do toque contínuo e lúgrebe da sirene que tão bem conhecia. Apesar do cansaço e do desgaste de três dias e três noites consecutivas sem dormir, as 72 horas mais longas do último ano, esforçou-se e levantou-se, rápida e silenciosamente (como desde cedo aprendera a fazer), dirigiu-se à casa da banho e, em menos de cinco minutos, refrescou-se e envergou de novo as roupas chamuscadas e impregnadas de cheiro a fumo e terra queimada que eram o seu uniforme. Antes de sair a correr porta fora, olhou uma última vez de relance para o vulto ao lado de quem até há pouco repousava. Espreitou e contemplou a face que o acompanhava há já alguns anos e decorou cada detalhe. Beijou-a em silêncio e à distância, ansiando já pelo regresso a casa e aos seus braços. No caminho para a porta da frente, entreabriu um pouco mais a porta de um outro quarto e perscrutou a penumbra, em busca do corpo pequeno e rechonchudo deitado no berço. Novo beijo silencioso e uma prece para que tudo acabasse depressa e a volta ao lar fosse célere. Já na rua, cobriu em poucos minutos de corrida a distância que separava a sua casa do quartel dos bombeiros voluntários da localidade. Os camaradas chegavam também ao mesmo tempo, todos eles com o mesmo aspecto cansado e desgastado, cada rosto evidenciando o desalento latente do combate inglório que vinham travando há dias. Ao longe, apenas uma coluna de fogo negro que se erguia, célere e impiedosa, no horizonte, contrastando num cenário que tinha tanto de belo como de horrível com o azul de um dia nascente que prometia vir a ser pleno de sol e calor, os seus piores inimigos naquele momento. Já empoleirado no carro todo-o-terreno, por entre o ulular ensurdecedor das sirenes e o clamor da buzina do veículo, interrogou-se sobre as condições do terreno que teriam de enfrentar. Por entre matagais, zonas inacessíveis e arvoredo a perder de vista (mesmo os cotos já calcinados por fogos anteriores) procurava o local onde iriam proceder, uma vez mais, a um combate cujo resultado final era sempre uma incógnita... especialmente devido aos parcos meios de que a sua corporação dispunha para travar o mesmo! Chegaram... as chamas lavravam o enorme campo à sua frente, ganhando força a cada instante, tornando-se cada vez mais altas, ameaçando cruelmente tudo e todos quanto se cruzassem no seu caminho. Por experiência adquirida em tantas outras situações do género, sabia que ia ser uma tarefa espinhosa, pois o fogo dirigia-se, empurrado pelo vento que subitamente despertara, para meia dúzia de habitações ali perto, que ele sabia pertencerem a pessoas idosas e com poucas possibilidades de serem evacuadas a tempo, muito por culpa da inacessibilidade do terreno. Não ia ser fácil, pensou, nada fácil mesmo... Ainda assim, não hesitou um instante que fosse. Nem poderia. Era bombeiro desde que se lembrava e o seu coração não lhe ditava mais nada que não fosse avançar e seguir em frente. Fê-lo, levando consigo dois homens mais novos mas igualmente experientes. O comandante decidira escalá-los para tentarem domar a frente mais perigosa, que colocava em risco as habitações que ainda há pouco havia observado. A cada passada forte e decidida, constatava que desta vez ia ser mesmo um tudo ou nada frente às chamas, cujo crepitar já se fazia ouvir mais perto. O terreno era mau, muito acidentado e a mangueira que levavam escassa perante tamanha área. Da mesma forma, não tinham tempo para debastar o terreno ao seu redor, evitando assim a progressão daquele mar de chamas, imenso e pavoroso. Começaram o combate por demais desigual, tendo sempre em mente que do seu sucesso dependia a preservação das casas, dos bens e das vidas das pessoas algures acima deles. Eles estavam no pior sítio possível, com uma missão única a desempenhar. Então, de repente, quase sem saberem como, viram-se frente a frente com as chamas, num avançar tão súbito que, logo a seguir, se encontravam quase rodeados por aquele inferno ardente e sufocante. Não baixaram os braços e continuaram a lutar com quantas forças tinham... uma luta inglória, quase perdida. Os colegas olhavam para ele em busca de um sinal de bater em retirada. Todos sabiam que, para o fogo crescer tanto em tão pouco tempo, decerto haveria mão criminosa na origem do mesmo. Mas da suspeita quase certeza à prova irrefutável ia uma longa distância e todos eles o sabiam. O inferno prolongava-se e tornava-se cada vez mais insustentável permanecer ali. Com um grito de comando, que não admitia refutação, ordenou aos colegas que recuassem e fossem directos ao comando de operações, pedir reforços e meios aéreos. Ele ficaria ali e tentaria evitar o pior. Olharam para ele como se fosse louco, mas cumpriram e rapidamente desapareceram do local. Mal o fizeram o fogo apertou o cerco, cada vez mais alto, forte e feroz... Olhou ao seu redor, mas continuou, com o pensamento na família que, sabia-o, esperava por ele...


Rosália Sousa



publicado por scorpiowoman às 22:59
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4 comentários:
De sofialisboa a 29 de Agosto de 2005 às 12:43
vim aqui por acaso e gostei muito da tua história, até que podia ser real, se é que já aconteceu mesmo.sofialisboa


De Blueyes41 a 27 de Agosto de 2005 às 23:45
Excelente texto Rosália. O assunto é triste, penoso e actual mas mesmo sendo isso tudo relatas de uma forma que não deixa dúvidas da tua sabedoria no escrever. Beijinhos


De aflores a 23 de Agosto de 2005 às 09:30
Bonita homenagem num texto fantástico. Para o ano, já não vamos sofrer tanto porque nada mais haverá para arder.


De Maria do Céu a 22 de Agosto de 2005 às 21:08
Neste post o assunto é um facto triste para o qual vão escasseando argumentos. Bom post! Beijinhos.


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