Este é o meu refúgio, o meu abrigo. Aqui espelho o meu eu, sob a forma dos meus pensamentos feitos palavras...
Quarta-feira, 9 de Fevereiro de 2005
Lili
Nunca olhei muito para o lado enquanto, durante seis anos, apanhei o comboio, quase diariamente, para me deslocar para a faculdade. No entanto, ainda assim, muitas eram as caras conhecidas das viagens realizadas à mesma hora, com o mesmo destino. Até já sabia quem trocava de linha como eu... e acabava sempre por vislumbrar rostos conhecidos da Cidade Universitária, alguns também da faculdade que frequentava.
Contudo, houve alguém em quem reparei algumas vezes, mesmo não sabendo por quê. Era uma rapariga, baixinha (quando, como eu, se tem 1,74 m de altura, é difícil evitar usar esta palavra), e que esperava pelo comboio duas filas abaixo. Eu seguia sempre na primeira carruagem da primeira composição, junto ao maquinista. Era uma das formas mais eficazes de trocar de comboio e ainda conseguir um lugar para prosseguir viagem sentada.
Lembro-me que reparei primeiro no seu ar carrancudo. Expressão fechada. Fecho os olhos e recordo o momento: Manhã de sol, céu limpo. Tão limpo que se distinguiam perfeitamente os contornos da serra de Sintra e do Palácio da Pena no horizonte. Duas filas abaixo daquela em que me encontrava, lá estava ela: calças e blusão de ganga, botas (ou seriam sapatos de ténis?), dossiê, mala preta ao ombro e uma deliciosa camisola tipo pólo, cor-de-rosa salmão, com gola e colarinhos brancos e atilhos em vez de botões. Digo deliciosa porque adorei a camisola. Era diferente. Já a dona da mesma... Sinceramente? Achava-a antipática. (Onde já se viu, reparar em alguém por causa de uma peça de roupa?)
Descobri mais tarde que frequentávamos a mesma faculdade. No 5.º ano chegámos mesmo a ser colegas de turma em Didáctica da Língua, uma das cadeiras do Ramo de Formação Educacional - Variante de Estudos Portugueses. Ainda hoje não recordo exactamente quando começámos a falar, mas sei que foi por intermédio de alguém que se tornou muito especial para ambas, minha colega de licenciatura e autora de uma amizade que se tornou ímpar. Obrigada, Gracinda!
Já no ano de estágio, enquanto professora e aluna em simultâneo, sei que começámos a falar mais e trocámos então os números de telemóvel e os 'nicks' de um dos programas de conversação mais utilizados na altura, o ICQ. Falávamos algumas vezes e descobrimos as nossas rivalidades clubísticas: eu do Benfica, ela do Sporting.
Até ao dia... da nossa primeira grande aventura!
Recordo-me que estávamos em Maio. Eu tinha de entregar o trabalho final de estágio, que ainda estava por terminar. Lembro-me que nem sequer almocei. À medida que as horas passavam, comecei a perceber que nunca chegaria a Lisboa a tempo de conseguir entregar o projecto dentro do prazo. Teria de ir de carro, a conduzir. Eu, conduzir em Lisboa? Pois sim... Apesar de ter carta desde 1997, só em inícios desse ano começara a conduzir, entre a escola onde fora colocada e casa, um percurso simples e linear, sem grandes complicações. Agora, Lisboa... Confusão, imenso trânsito...
Confesso: a hipótese assustava-me consideravelmente. Então, e por que não ligar-lhe para saber se ela podia ir comigo e dar-me uma força? Se eu não conseguir conduzir, leva ela o carro... Pois.
"Olha, desculpa lá estar a ligar, a chatear, mas estou nesta situação... Será que podias ir comigo? Ah... Ainda tenho de passar na minha escola, por causa de uns livros... Achas que dá?"
Fomos, regressámos e correu tudo lindamente. Não sei como nem porquê - mas também não interessa muito - mas esse dia transformou para sempre a minha vida. Começámos a falar e, em breve, já não passávamos uma sem a outra.
Tive as melhores férias da minha vida até então - uma semana passada na 'roulotte', no parque de campismo, em que as peripécias e aventuras foram mais do que muitas - a que se seguiram mil e uma peripécias e um jogo de futebol inesquecível: Portugal x Estónia no terceiro anel do velhinho Estádio da Luz! Lembras-te?
As nossas vidas transformaram-se imenso desde então e períodos houve em que a distância entre nós foi enorme.
Todavia, como em tantas outras fases da vida, é nos momentos de maior aflição e agrura que se sabem e conhecem aqueles que são os nossos verdadeiros amigos, a quem, muitas vezes, consideramos como irmãos.
No teu casamento (lindo), a tua mãe disse-me para não me esquecer que era a sua filha emprestada e que devia ver nos teus pais os meus próprios pais "emprestados". Levou-me às lágrimas que conseguira reter durante quase todo o dia. Confesso que, embora nunca os esqueça, sou uma "filha emprestada" muito desnaturada...
Comecei a chamar-te "mana" de vez em quando, em tom de brincadeira, mas já há algum tempo que me tratavas como 'picola sorella'.
No entanto, talvez não saibas quando eu senti, de verdade, bem fundo no meu coração, este laço que nos une.
Apesar de tudo quanto passámos juntas, dos momentos menos bons (como a doença do meu avô, a morte do meu padrinho e a morte da nossa Emília num espaço de oito dias e tantas outras confusões), este laço fez-se sentir naquela que foi uma das experiências mais dolorosas da minha vida: a perda do meu bebé.
Durante todo o tempo em que tive de estar de repouso, foste tu quem me ligou, várias vezes por dia, para me fazer companhia, consolar e fazer rir. Preocupavas-te com o descanso, a alimentação, tudo... Não consigo esquecer quando os teus pais apareceram lá em casa: uma panela de sopa e os caracóis que só a tua mãe sabe fazer! Que surpresa tão boa, tão cheia de carinho e amizade...
Quando o inevitável aconteceu, foste quem mais esteve presente (mesmo que ausente fisicamente) e mais força me deu para prosseguir o meu caminho neste trilho que é a vida.
Consegui superar. Estou cá, a tentar de novo...
Agora, neste momento, tu atravessas a melhor fase da vida de qualquer mulher. Estás quase a ser mãe.
Apesar de, no início, devido a tudo o que aconteceu, me ter afastado um pouco, tenho procurado compensar e acompanhar-te o mais que posso nesta recta final. Afinal, esse bebé vai ser meu sobrinho, ainda que emprestado. Já lhe quero tanto ou quase tanto como à mãe dele, minha amiga, minha irmã.
Estes últimos dias foram passados de volta das peças para o enxoval do petiz. Não me canso de bordar e de pensar como será vê-lo rodeado por todas aquelas peças mimosas. Espero que ele consiga sentir o carinho e a ternura empregues em cada uma... tal como tu.
Sei que, provavelmente, não esperavas encontrar estas linhas à tua espera, mas têm toda a razão de ser, especialmente por traduzirem tudo aquilo que sei não conseguir dizer. Sabes o que as motivou? O teu comentário a esta minha estreia, tão cheio de vida e surpresa que, confesso, me emocionou profundamente. Estaremos quites ;)?
"Te voglio molto benne, vechia sorela!" - que é como quem diz: "Adoro-te mana!"
Até sempre...

Rosália


publicado por scorpiowoman às 13:01
link do post | comentar | favorito

1 comentário:
De aflores a 11 de Fevereiro de 2005 às 18:24
Comentar o quê? Vou voltar a ler teu artigo e deliciar-me com a qualidade, sentir, amizade e beleza na tua pessoa e da tua amiga. Parabéns a ambas:)


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